segunda-feira, 29 de junho de 2015

Pele de cobra


Lula (Foto: Wilson Dias / Agência Brasil)Lula (Foto: Wilson Dias / Agência Brasil)
Ronald de Carvalho, O Globo
Quem disse que a História se repete como farsa? A afirmação original é de Karl Marx, mas ele tem errado tanto nos tempos modernos, que é possível que Lula tenha razão em duvidar.
Há mais de 60 anos, Juan Domingo Perón, em 1951, se coroava mais uma vez como presidente argentino. Ao lado de Evita Perón, “mãe dos descamisados”, abandonava o cetro de líder do justicialismo, para ser simplesmente o divino mito do peronismo. Perón passou encarnar a própria divindade e assim é cultuado, mesmo que sob a forma bizarra de ectoplasma político.
Lula saiu pregando uma “revolução” no PT e falou dos vícios de todo partido que cresce, se agiganta e imagina que tomou o poder para sempre. “Não sei se o defeito é nosso, se é do governo. O PT perdeu a utopia”, afirmou. Luiz Inácio candidamente lembrava o líder operário que foi, e que participou da luta pelas liberdades, junto com jovens, religiosos e intelectuais.
O Lula de 2015, por poucas letras, talvez nem saiba como foi a trajetória de Perón, mas por instinto de sobrevivência e sagacidade quer copiar-lhe o talento.
A mão que beija não é a mesma que apedreja. Com a esquerda, Lula fez afagos nas lembranças do passado; mas, com a direita, bate com força ao afirmar que a gestão de Dilma está como “um governo de mudos”.
O talento político e a percepção aguda do senso de oportunidade são uma marca de personalidade que Luiz Inácio da Silva, certamente, não construiu na alimentação de sua infância. O gênio sobrevive à pobreza. Lula sabe que não pode se oferecer para comandar o futuro. Os atores do futuro é que terão que convidar um líder do passado para reinar entre eles.
“O PT precisa urgentemente voltar a falar pra juventude tomar conta do PT. O PT está velho. Eu, que sou a figura proeminente do PT, já estou com 69 (anos), já estou cansado, já estou falando as mesmas coisas que eu falava em 1980. Fico pensando se não está na hora de fazer uma revolução neste partido, uma revolução interna, colocar gente nova, mais ousada, com mais coragem. Temos que decidir se nós queremos salvar a nossa pele e os nossos cargos ou queremos salvar nosso projeto. E acho que nós precisamos criar um novo projeto de organização partidária nesse país”. Finalmente, Lula dá o tom de seu recado.
É difícil saber se ainda há caldo de cultura para o criador se purificar distanciando-se das criaturas. Em todas as mitologias, os deuses comiam seus filhos ousados e soberbos, mas nessa teogonia política, muitos já se consideram deuses. A metamorfose é possível mas, assim como na natureza, pode ser demorada e caprichosa. As cobras trocam a pele periodicamente. O processo, chamado de ecdise, ocorre para o réptil poder expandir seu corpo e crescer, explica a literatura veterinária. A pele antiga, que está feia e suja, é trocada por uma pele limpa e com seus desenhos e cores vivos.
Sem pompa e muita circunstância, Lula tenta inaugurar as bases do lulismo. De Frei Betto a Paulo Delgado surgiram vozes saudosas dos tempos puros que podem voltar. É sempre bom quando aquilo em que acreditamos pode ser a verdade que transformará a humanidade.
Sem interpretar as intenções do futuro, a bancada de senadores do PT divulgou uma nota em solidariedade ao ex-presidente Lula, que, nos últimos dias, disparou críticas à presidente e ao partido. “Tentam transformar suas virtudes em vícios e suas ações pelo Brasil em crimes. Falta, sobretudo, respeito ao presidente mais bem avaliado da História do Brasil”, diz o texto publicado no site da bancada do PT no Senado.
Na época da troca de pele, as cobras são mais ativas e ariscas. Não é a melhor época para lidar com elas, e se aconselha deixá-las quietas em seu canto.
A grande vantagem que o lulismo bebe na tradição peronista é que o tráfego das ideias pode se fazer livremente, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. O futuro e o juízo de quem os tiver saberão o fim dessa história.
Ronald de Carvalho é assessor político do Governo do Distrito Federal

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